Entrevista
"O Brasil não é um
estado plenamente democrático", diz Marco Antonio Villa
Para historiador, que lança o livro 'A História das
Constituições', o Executivo é autoritário, o Legislativo é subserviente e o
Judiciário é "o pior dos três"
Branca Nunes
Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade
A
prolixidade, a pouca ênfase nos direitos individuais e a dissociação entre o
Brasil real e o legal. Essas são algumas das características comuns a todas as
constituições brasileiras (sete ao todo, proclamadas de 1824 a 1988) que o
historiador Marco Antonio Villa disseca em A História das Constituições –
200 anos de luta contra o arbítrio. O livro, que será lançado nesta
terça-feira em São Paulo, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915),
também apresenta o contexto histórico da época em que foram instituídas e conta
algumas peculiaridades tipicamente nacionais. Um exemplo está na Constituição
de 1891, que determinava que fosse colocada uma lápide em homenagem ao general
Deodoro da Fonseca, que proclamou a República, na casa em que faleceu Benjamin
Constant, um dos líderes do movimento republicano.
Em meio a
livros de história, sociologia e ciências políticas, e a macaquinhos que vão
até a varanda comer pedaços de frutas deixados pelos anfitriões, Villa conversou
com o site de VEJA em sua casa na Serra da Cantareira, Zona Norte da capital.
Crítico impenitente da corrupção que assola o Brasil, o historiador discorre
sobre as razões que o levaram a escrever um livro sobre o tema e outras mazelas
brasileiras. Entre elas figuram um Executivo autoritário, um Legislativo
subserviente e um Judiciário que desrespeita a Constituição que jurou defender.
Por que o
senhor resolveu escrever um livro sobre as constituições brasileiras? Quando estava escrevendo a minha tese de doutorado sobre a Revolta de
Canudos li a Constituição de 1891 e, ao pesquisar sobreo governo Jango, li a de
1946. Nas duas encontrei episódios curiosos. Ao estudar outros momentos da
história, acabava lendo as constituições daqueles períodos e todas as vezes
percebia algumas bizarrices, coisas que não faziam o menor sentido. Resolvi
escrever um livro que desse uma visão de totalidade das constituições
brasileiras, mostrando em que aspectos elas foram significativas, especialmente
com relação aos direitos do cidadão. Também queria contar alguns absurdos. A de
1891, por exemplo, determinava que fosse colocada uma lápide em homenagem a
Deodoro da Fonseca na casa em que faleceu Benjamin Constant. A de 1988 tem um
artigo sobre a pesca das baleias e outro, sobre o ensino de história. Por que
não matemática, geografia, português? Independentemente de serem importantes ou
não, essas coisas não precisariam nem deveriam estar na Constituição.
Por que o
Brasil teve tantas constituições? As pessoas
acham que é uma característica da América Latina, mas não é verdade. No México,
por exemplo, a constituição em vigor foi promulgada em 1917. O problema é que
temos a mania de querer refundar o Brasil. É como se estivéssemos falando a
todo momento: “Agora o país vai pra frente!”. Li as constituições com o
objetivo de tentar entender essas refundações. É por isso que, apesar de breve,
o contexto histórico também está presente no livro. O texto constitucional não
é produto do nada.
Qual a
Constituição mais antiga do mundo? Sem contar
a Constituição da Inglaterra, que é oral, a mais antiga é a norte-americana, de
1787. Do fim do século XVIII até hoje ela teve apenas uma dúzia de emendas.
Temos a ideia de que para usufruir de um direito ele precisa estar na
Constituição, mas isso não é verdade. Pode estar num código, numa legislação
ordinária.
Como o
senhor vê a relação entre o cidadão e o estado? Sempre fortalecemos muito o estado. Quando acontece alguma reforma, ela
é feita de cima para baixo. Nunca nasce da sociedade. Isso marca a nossa
história e as várias correntes políticas. Quando a direita toma o poder, ela o
exerce pela força. Quando é a esquerda, ela acha que precisa aparelhar o estado
para governar. É um ponto de aproximação dos extremos: a dificuldade de
conviver com a democracia. Tanto a direita quanto a esquerda não lidam
facilmente com as diferenças, com as divergências e com a pluralidade, nem com
a alternância de poder. Há sempre o desejo de se perpetuar. Getúlio Vargas
queria ser candidato em 1937. Como não podia, optou pelo golpe que instituiu o
Estado Novo. O Jango também, nas eleições que ocorreriam em 1965 se os
militares não o tivessem deposto. Se existe um fio condutor nisso tudo é sempre
uma questão do cidadão contra o estado. E o estado sempre vence.
Como o
senhor enxerga o desempenho dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário? O Judiciário é o pior deles. Ao mesmo tempo em que é cioso da sua
autonomia, interfere na esfera dos outros poderes. No caso da união civil entre
pessoas do mesmo sexo, o STF fez uma leitura ousada e inconstitucional da
Constituição. Não estou entrando no mérito do que é certo ou não, mas é triste
ver um país que tem como guardião da Constituição um poder que a desrespeita.
No próprio plenário os ministros descumprem a Constituição. O estado laico foi
adotado no Brasil em 1891, mas atrás da mesa do presidente do STF existe um
crucifixo.
O senhor
acredita que o Supremo vai julgar o caso do mensalão do PT em 2012? Duvido que o julgamento aconteça em maio de 2012. No ano que vem, outros
ministros irão se aposentar e teremos um Supremo totalmente escolhido por Lula
e Dilma Rousseff. Aí sim vão julgar o mensalão.
O sistema de
nomeação dos ministros do STF, por meio de uma indicação do presidente da
República, deveria ser modificado? A forma
como são escolhidos os ministros do STF é a mesma desde que ele foi criado. O
Executivo escolhe e o Senado referenda ou não o nome proposto. O problema é que
nunca o Senado disse não. Isso mostra uma subserviência do Legislativo com
relação ao Executivo e o pouco interesse do Legislativo em ter um Judiciário
efetivamente independente. Raramente houve sabatinas que fizeram alguma coisa
além de dar as boas vindas ao ministro escolhido. O caso de Dias Toffoli é um
dos mais escabrosos. Ele foi reprovado em dois concursos públicos para juiz,
não tinha qualquer especialização na área e se transformou em ministro do STF.
Isso só existe no Brasil. Uma canetada do presidente da República colocar o
advogado do seu partido na instância máxima da Justiça. Isso é uma brasilidade.
O que o
senhor acha da Constituição de 1988? Apesar de
prolixa e detalhista a Constituição de 1988 é a melhor que tivemos.
Principalmente o artigo 5º, que trata das liberdades. É ele que não permite que
haja censura. Mas existem coisas absurdas. Um exemplo é o vice-presidente da
República assumir a Presidência toda a vez que o titular viaja para o exterior.
Nada na Constituição determina que seja assim. É uma invenção e uma
contradição. Um exemplo: Dilma está na África do Sul e assina vários acordos,
porque ela é presidente. Ao mesmo tempo, Michel Temer também é presidente e,
como tal, também pode assinar diversos acordos. Quem manda, então? Em 1962,
quando o presidente João Goulart visitou John F. Kenedy, o deputado Ranieri
Mazzilli, presidente da Câmara, assumiu o posto e nomeou um novo ministério.
Quando Jango voltou teve que renomear o seu ministério.
O senhor
considera que vivemos uma democracia plena? Mesmo hoje,
com essa Constituição infinitamente melhor do que as outras, não vivemos num
estado plenamente democrático. Se vivêssemos, nunca haveria tantas mazelas. Não
teria havido por tanto tempo um Orlando Silva no Ministério do Esporte. É só
comparar quantos artigos da Constituição são dedicados à preservação dos
poderes e quantos são dedicados aos direitos dos cidadãos para constatar que o
cidadão perde. É a predominância do estado com relação ao cidadão.
O PSD propõe
uma nova Constituição. O que o senhor pensa disso? Sou completamente contra. Primeiro, porque tenho receio que alguns direitos
sejam retirados da Constituição. Além disso, porque sempre há o perigo do
caudilhismo, um fantasma que ronda a América Latina e o Brasil. Hoje, a
mobilização popular é muito pequena, há um desinteresse em discutir as questões
do país e um individualismo excessivo. Corremos risco em relação às liberdades.
Sempre existe uma tentativa de suprimi-las, como no caso da liberdade de
imprensa. Quando se tem uma vitória eleitoral confortável, você acha que pode
tudo. Isso é típico da América Latina, que tem muita dificuldade de conviver
com a democracia. A constituição pode ter muitos defeitos, mas precisamos
garantir a base dessa Constituição, especialmente o artigo 5º. Ele nos preserva
da violência do estado.
Repito uma
pergunta que o senhor faz na primeira parte do livro: quando vamos crescer? Não sou otimista quando penso num futuro próximo. O país está no começo
da adolescência, naquela fase em que ainda não se compreende muito bem as
relações sociais, os símbolos. Não existem partidos organizados, sociedade
organizada, debates sobre as grandes questões nacionais. O que há é um país que
cresce economicamente, embora muito menos do que poderia crescer. Esse é o
governo que teve o maior número de ministros que caíram por envolvimento em
escândalos de corrupção na história republicana do país e, ao mesmo tempo, não
há o desgaste da figura presidencial. É inacreditável. Tem coisas que é só
existem ao Sul do Equador, em especial no Brasil. Por que isso acontece? Porque
não existe oposição política. Se existisse, ela capitalizaria isso, como em
qualquer país do mundo. Mas tudo indica que a oposição continuará esperando de
braços cruzados.
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