Genética
Mesmo corpo, vários genomas
Estudos publicados nos últimos três anos revelam que um mesmo indivíduo pode ter em seu corpo células com DNAs diferentes. Conhecer o padrão dessas "mosaicos genéticos" pode ajudar no tratamento e diagnóstico de doenças e até em investigações policiais
Enquanto
o corpo humano cresce e se desenvolve, pequenas falhas no processo de
replicação das células podem dar origem a mutações no DNA que as constitui. Uma
pesquisa recente analisou as células da pele de sete indivíduos e descobriu que
30% delas apresentavam genomas diferentes do resto do corpo (Thinkstock)
Desde que os biólogos James Watson e Francis Crick descobriram a
estrutura do DNA em 1953, os cientistas supunham que todas as células do
corpo de um indivíduo saudável possuíam o mesmo genoma, uma cópia exata
da receita original, presente no embrião. Eventuais mutações,
acreditavam, teriam consequências drásticas, como o surgimento de
tumores. Descobertas feitas nos últimos anos, no entanto,revelam que
uma pessoa pode normalmente carregar vários DNAs espalhados pelo seu
corpo, resultado de mudanças sem fim em seu código genético.
Pesquisadores já encontraram essas mutações em diversos tecidos do corpo
humano, como cérebro, pele, sangue e rins. Conhecer o padrão desse
mosaico genético pode ajudar no diagnóstico e tratamento de doenças e
até em investigações policiais.
Todo animal nasce a partir do encontro de um óvulo com um
espermatozoide, de que resulta seu DNA original.Até a última década, os
pesquisadores reconheciam apenas um DNA por indivíduo, replicado com
perfeição — nucleotídeo por nucleotídeo — por todo o corpo. “As
apostilas de genética deixavam claro que todas as células deveriam ter o
mesmo genoma. Podia haver algumas poucas exceções, como as células
reprodutivas e algumas do sistema imunológico, mas a história terminava
aí”, afirma Alexander Urban, professor de psiquiatria e genética na
Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e autor de algumas das
principais pesquisas sobre a variação no DNA humano. Uma das exceções
conhecidas pelos pesquisadores desde os anos 1950 é o quimerismo, que
ocorre quando dois embriões que dariam origem a gêmeos se fundem no
útero materno, gerando um único indivíduo com dois DNAs diferentes
espalhados pelo corpo.
Nos últimos cinco anos, no entanto, os pesquisadores descobriram que
variações do DNA não são incomuns, nem necessariamente danosas. “Quase
todas as pessoas possuem algumas dessas variações espalhadas pelo corpo.
Ainda não podemos afirmar categoricamente o número de mutações ou de
pessoas que as carregam, mas as temos encontrado na maioria dos estudos
que fazemos. Deve levar entre cinco a dez anos para que tenhamos dados
mais precisos”, afirma Urban.
Embora seja um campo de estudo relativamente novo — os estudos mais
robustos não possuem mais do que três anos —, os pesquisadores já foram
capazes de catalogar uma série dessas variações. Em um dos estudos que
contaram com a participação de Urban, os cientistas valeram-se da
autópsia de seis indivíduos para mapear a variedade genética de seus
órgãos. Em cinco dos seis corpos foram encontradas mutações. “Isso não
quer dizer que os genomas dos órgãos sejam completamente diferentes. Em
um dos casos, por exemplo, nós encontramos alterações em apenas cinco
pares de bases que compõem o DNA dos rins e do fígado. Perto dos três
bilhões de pares que compõem todo o genoma, é muito pouco”, diz Urban.
Com isso, os cientistas puderam não só comparar as diferenças dos
genomas entre diferentes pessoas, mas também entre os diferentes tecidos
do mesmo indivíduo. Descobriram assim, novas formas de quimerismo, como
filhos que carregavam em seu sangue algumas células maternas, que
absorveram quando estavam ainda estavam no útero, ou mães que tinham, em
diversos tecidos de seu corpo, restos de células com o DNA dos filhos.
Mas o que mais surpreendeu os cientistas foram as análises genéticas
que mostraram que as células de um mesmo indivíduo podiam começar a
sofrer mutações espontâneas durante seu desenvolvimento, gerando tecidos
com DNAs diferentes. Esse fenômeno — que recebeu o nome de mosaicismo,
como se o indivíduo fosse formado a partir de um mosaico de genomas
diferentes — se mostrou muito mais comum do que se suspeitava. Uma
pesquisa realizada por Alexander Urban, por exemplo, analisou e comparou
o DNA das células da pele de sete indivíduos. Como resultado, descobriu
que 30% das células estudadas apresentavam pequenas variações genéticas
que as diferenciavam do resto do corpo.
Os pesquisadores querem agora saber em que momento do desenvolvimento
corporal essa mutações acontecem. “Se uma mutação acontece no começo do
desenvolvimento cerebral, por exemplo, ela estará em todos os neurônios
do cérebro”, diz Urban. Se só acontecer mais tarde, estará muito menos
presentes — e será muito mais difícil achá-la.
Mutações e doenças — Os cientistas ainda não são
capazes de afirmar com certeza quais são os efeitos de todas essas
mutações para a saúde humana. “O que podemos afirmar é que a maioria
dessas variações não é muito maligna”, diz Urban. "Ou estaríamos todos
mortos."
Uma minoria dessas mutações, no entanto, tem efeitos perversos para a
saúde da população. Essas variações são as mais fáceis de descobrir,
pois os indivíduos que as carregam adoecem, procuram os médicos e
eventualmente têm seu DNA analisado. Foi assim que os cientistas
conseguiram ligar o mosaicismo a uma série de doenças raras, como as
síndromes de McCune–Albright, de Pallister–Killian e de Proteus, que têm
sintomas semelhantes, gerando deformações nos ossos, mudanças na
pigmentação da pele e no desenvolvimento corporal.
Uma pesquisa publicada por cientistas da Universidade da Califórnia
no ano passado, por exemplo, mostrou que mutações nas células do cérebro
são responsáveis pela megaloencefalia, uma condição na qual metade do
órgão cresce mais do que a outra e causa severas convulsões. O
laboratório de Alexander Urban está, neste momento, pesquisando se
existe alguma relação entre mudanças no DNA das células cerebrais e
doenças mais comuns, como autismo e esquizofrenia.
As doenças mais conhecidas por surgirem a partir de mutações no DNA
são os cânceres. Eles surgem a partir de mudanças grandes nos genomas —
podendo atingir alguns milhares de pares de base — que fazem com que as
células passem a se reproduzir descontroladamente.
Com
os avanços na área, os cientistas estão começando a entender que tipos
de mutações são as mais perigosas. Uma pesquisa publicada este mês na
revista Science, por exemplo, comparou as variações genéticas
encontradas naturalmente no genoma humano com aquelas que aparecem nos
tumores. Como resultado, mapeou as regiões do DNA que são mais
vulneráveis a alterações malignas, que podem dar início ao câncer. “Nós
classificamos essa regiões como sensíveis ou ultrassensíveis, pois estão
mais suscetíveis a esse tipo de mutação”, diz Mark Gerstein,
pesquisador de bioinformática na Universidade de Yale, nos Estados
Unidos, e autor do estudo, em entrevista ao site de VEJA.
A pesquisa de Mark Gerstein é um exemplo do rumo que podem tomar as
novas pesquisas na área da genética. Ao descobrir que as variações no
DNA são muito mais comuns do que se pensava, e ao mapear quais delas
podem dar origens a doenças, os cientistas estão dando início a uma nova
etapa da medicina personalizada. “Ao caracterizar completamente um
tumor, por exemplo, nós podemos administrar drogas desenvolvidas para
aquele tipo de câncer, com suas mutações específicas”, afirma Gerstein.
Investigação policial – Outra área que deve sofrer
consequências a partir desses estudos é a ciência forense, em particular
o uso de teste genéticos para identificar criminosos. “O mosaicismo não
pode levar a uma falsa acusação. É impossível que alguém vá preso
porque uma mutação em seu DNA o torna parecido com o de um criminoso — o
DNA é grande demais para isso. Mas é possível, embora muito improvável,
que algum criminoso não seja encontrado porque as marcas que deixou não
correspondem ao DNA do resto de seu corpo”, diz Urban. O mesmo tipo de
problema pode ser apontado em outros testes genéticos, como os que
examinam a paternidade.
O pesquisador diz que, para resolver esse impasse, bastariam algumas
mudanças nos testes. Esses exames não costumam cobrir todo o genoma do
indivíduo, mas alguns marcadores específicos que se encontram ao longo
do DNA. Se os pesquisadores descobrirem os trechos mais suscetíveis às
mutações, ou os testes passarem a analisar um número maior de
marcadores, os erros tendem as ser evitados. "São mudanças pequenas, que
não exigem o abandono dos exames. Essa é uma área muito nova de
pesquisas, mas, por enquanto, nada do que descobrimos justifica grandes
preocupações", afirma.
Saiba mais
QUIMERISMO
Quimera é um organismo que possui células descendentes de dois zigotos diferentes. Ele pode surgir, por exemplo, a partir da fusão, ainda no útero materno, dos embriões de dois gêmeos não-idênticos. Nesse caso, os DNAs encontrados em sua célula serão bastante diferentes, indicando a mistura de dois indivíduos.
Quimera é um organismo que possui células descendentes de dois zigotos diferentes. Ele pode surgir, por exemplo, a partir da fusão, ainda no útero materno, dos embriões de dois gêmeos não-idênticos. Nesse caso, os DNAs encontrados em sua célula serão bastante diferentes, indicando a mistura de dois indivíduos.
MOSAICISMO
Quando um indivíduo possui células com DNAs diferentes, mas que descendem do mesmo zigoto. Ele pode surgir a partir de mutações que as células sofrem conforme o corpo se desenvolve. No mosaicismo, as diferenças genéticas entre as células costumam ser muito pequenas, atingindo poucos pares de base em meio aos bilhões que existem no DNA..
Quando um indivíduo possui células com DNAs diferentes, mas que descendem do mesmo zigoto. Ele pode surgir a partir de mutações que as células sofrem conforme o corpo se desenvolve. No mosaicismo, as diferenças genéticas entre as células costumam ser muito pequenas, atingindo poucos pares de base em meio aos bilhões que existem no DNA..
EPIGENÉTICA
O mosaicismo não é a única forma pela qual os genes podem mudar sua forma de atuação durante a vida de um indivíduo. Nos últimos anos, uma série de pesquisas tem mostrado a importância da epigenética, uma alteração que acontece no modo como os genes se expressam, sem acarretar, no entanto, em alteração do código genético.
O mosaicismo não é a única forma pela qual os genes podem mudar sua forma de atuação durante a vida de um indivíduo. Nos últimos anos, uma série de pesquisas tem mostrado a importância da epigenética, uma alteração que acontece no modo como os genes se expressam, sem acarretar, no entanto, em alteração do código genético.
Ela é diferente da mutação que acontece no mosaicismo. Em uma
mutação, o próprio código genético é alterado em algum momento do
desenvolvimento do indivíduo. Já a mudança epigenética só altera a forma
como o gene funciona — o DNA continua o mesmo, mas já não atua do mesmo
modo. Essa mudança pode ser causada por fatores ambientais, como
poluição ou a prática de exercícios, e pode ser passada para as gerações
seguintes.
http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/mesmo-corpo-varios-genomas
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