IBGE produz peça de propaganda eleitoral
Escrito por José Maria e Silva
| 13 Dezembro 2013 www.midiasemmascara.org
Antecipando-se à campanha eleitoral
de 2014, instituto transforma o estudo dos indicadores sociais numa
defesa escancarada da Era Lula e do Programa Bolsa-Família.
O
corte justamente a partir de 2002 tem claramente um viés político, como
se a melhoria de indicadores sociais – algo de evolução lenta e
precisão difícil – fosse regida pelo calendário das urnas.
A
edição brasileira do jornal “El País”, que começou mais governista do
que diário oficial, estreou com uma vergonhosa entrevista da presidente
Dilma Rousseff, no dia 26 de novembro, da qual só se salva a foto de
autoria de Uly Martín, por sinal, de arquivo. Com um olhar desafiador, a
presidente forma um círculo com o dedo médio sobre o polegar e, como se
fora um Justo Veríssimo de saias, manda o povo brasileiro para aquele
lugar impublicável. Mas essa foto “punk” nada tem a ver com a entrevista
“pink”, em que o diretor do “El País”, Javier Moreno, de forma
rastejante, faz o papel de assessor de imprensa e, como se fosse mero
lacaio do Planalto, não só chama Dilma Rousseff de “presidenta” e tece
loas aos governos petistas, como se esforça por tornar compreensível a
própria Dilma, ao traduzi-la para o vernáculo.
É
claro que, mesmo para o “El País”, um dos mais conceituados jornais do
mundo, não é fácil bajular a presidente Dilma Rousseff a ponto de
torná-la inteligível. Depois dos primeiros dois terços de entrevista, o
editor vai perdendo o fôlego de copidesque e a verdadeira Dilma se
revela. Ao tratar da espionagem norte-americana, Dilma se confunde com a
nação e se declara soberana: “Uma relação como a do Brasil e dos
Estados Unidos, que os dois países querem que seja estratégica, não pode
ter como característica uma violação nem dos direitos civis da minha
população nem da minha soberania”. Parece pouca coisa, mas é
inadmissível a presidente acreditar que a soberania prevista na
Constituição é imanente à sua pessoa e não à nação. Um adulto
alfabetizado que não sabe disso não pode nem mesmo ser síndico de
prédio, pois corre o risco de burlar a soberania das assembleias de
condôminos.
Bastante à vontade diante do vexatório papel do “El País”, Dilma
Rousseff, depois de vender as maravilhas de seu governo ao jornal
espanhol, fez uma revelação na entrevista: “Esta semana resolveram
reavaliar o PIB. E o PIB do ano passado, que era 0,9%, passou para 1,5%.
Nós sabíamos que não era 0,9%, que estava subestimado o PIB. Isso
acontece com outros países também. Os Estados Unidos sempre revisam seu
PIB. Agora nós neste ano vamos crescer bem mais do que 1,5% – resta
saber quanto acima”. Tão logo a declaração de Dilma foi publicada, a
imprensa correu atrás da confirmação do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), órgão responsável pela apuração e
consolidação do PIB. Na ocasião, o IBGE não quis adiantar os números da
revisão e limitou-se a informar que no dia 3 de dezembro iria divulgar,
além dos resultados do terceiro trimestre, eventuais revisões no PIB,
que, em 2012, teve uma redução de 0,3%, o pior resultado desde 2009.
Como Brasília ainda não é Buenos Aires, muito menos Caracas, os índices
declarados por Dilma Rousseff ao “El País” não se confirmaram, numa
prova de que os órgãos do governo ainda têm alguma autonomia técnica. Na
terça-feira, 3, o IBGE anunciou que houve, de fato, uma revisão do PIB,
mas seu crescimento não foi de 1,5%, como havia dito a presidente, e,
sim, de 1%, apenas um décimo porcentual a mais do que o índice de 0,9%
anteriormente constatado. Já a expansão do PIB no segundo trimestre foi
mais expressiva após a revisão, passando de 1,5% para 1,8%. Além disso, o
IBGE anunciou que está fazendo alterações na metodologia de cálculo do
PIB e que as revisões definitivas devem ser divulgadas no final de 2014
(ano eleitoral) ou no início de 2015 (ano da inevitável quebradeira
pós-Copa).
Manipulando índices econômicos
Um dia antes desse anúncio do IBGE, o ministro da Fazenda, Guido
Mantega (provavelmente um dos piores titulares que já passaram pela
pasta na história do Brasil), fez a seguinte declaração: “O crescimento
do PIB no terceiro trimestre [deste ano] sobre o terceiro trimestre de
2012 está projetado em 2,5 por cento”. Essa afirmação do ministro
reforça a tentativa de ingerência política no cálculo do PIB já
manifestada por sua chefe ao “El País”. A definição do PIB pelo IBGE é
coisa séria. O cálculo do PIB não é apenas uma descrição matemática dos
fatos econômicos – dele decorrem consequências políticas e jurídicas. O
repasse de verbas para Estados e municípios, por exemplo, depende de
critérios que envolvem renda per capita, que, por sua vez, envolve o
PIB.
Portanto, o desejável é que nem a presidente da República
nem o seu ministro da Fazenda metam o bedelho no cálculo do PIB. Quando
Guido Mantega antecipa um novo crescimento do PIB no trimestre, antes
mesmo que ele tenha sido oficialmente anunciado, fica a impressão de que
o ministro da Fazenda determinou ao IBGE que lhe produza um PIB de
encomenda e que suas especulações antecipadas a respeito do assunto são
uma tentativa de disfarçar a ingerência política nos índices econômicos.
O mercado não gostou das declarações da presidente Dilma Rousseff sobre
a revisão e crescimento do PIB. E com razão: nos países bolivarianos da
América Latina, especialmente na Argentina de Cristina Kirchner e na
Venezuela de Chávez & Maduro, os índices econômicos, inclusive a
inflação, são claramente manipulados para satisfazer objetivos
políticos.
O Brasil provavelmente não chegará a tanto, mas seus
órgãos técnicos não estão totalmente imunes a desvirtuamentos
políticos. Prova disso é a “Síntese dos Indicadores Sociais 2013”,
divulgada na semana passada pelo IBGE. Essa série de estudos teve início
ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, por recomendação da ONU. Na
sessão de 29 de fevereiro de 1997, a Comissão de Estatística da ONU
aprovou a adoção, por parte dos países-membros, de um conjunto de
indicadores sociais para compor uma base de dados nacionais mínima,
capaz de possibilitar o acompanhamento técnico de programas sociais.
Surgia, assim, a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, publicada pela
primeira vez em 1999, ainda no governo tucano, e elaborada a partir da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que abrange todo o
território nacional.
O IBGE cruza os dados dessa fonte básica
de informação com dados de suas outras pesquisas sobre emprego,
orçamentos familiares e situação dos municípios, por exemplo. E também
recorre a dados externos, sobretudo do MEC e do Ministério da Saúde. O
resultado é praticamente um livro, majoritariamente composto por
gráficos e tabelas, mas também recheado de análises e comentários
técnicos. A Síntese dos Indicadores Sociais de 2013 do IBGE tem 266
páginas e traz indicadores sociais sobre aspectos demográficos da
população brasileira, como taxas de mortalidade e fecundidade, arranjos
familiares, domicílios, educação, saúde, trabalho e rendimento. Também
trata de grupos populacionais específicos, como crianças, jovens, idosos
e mulheres, e aborda desigualdades raciais e de gênero, já mencionadas
na recomendação da ONU sobre os indicadores sociais mínimos.
Calendário das urnas no IBGE
A despeito desse esmero técnico, a “Síntese dos Indicadores Sociais
2013” não consegue esconder seu viés político. Na introdução do
documento, o IBGE afirma: “Entre 2002 e 2012, a sociedade brasileira
passou por mudanças que produziram impactos significativos sobre as
condições de vida da população. Por um lado, o dinamismo do mercado de
trabalho se traduziu no crescimento da população ocupada e na
formalização das relações de trabalho, onde um contingente maior de
trabalhadores passou a contar com uma série de direitos e benefícios
vinculados à posse da carteira de trabalho. Da mesma forma, o
crescimento real do rendimento do trabalho ampliou não apenas o acesso
de mais trabalhadores ao mercado de consumo, como também reduziu os
diferenciais de rendimento de trabalho”. O IBGE destaca, ainda, “o papel
desempenhado pelo salário mínimo, cuja valorização neste período
permitiu a ampliação do poder de compra dos trabalhadores”.
O
que primeiro chama a atenção nesse texto é o período a que se refere –
“entre 2002 e 2012” –, que remete justamente aos dois governos de Luiz
Inácio Lula da Silva e à primeira metade do governo Dilma, ou seja, aos
governos do PT. Alguém pode imaginar que a escolha do período não passa
de uma coincidência, por se tratar de um decênio. Mas a “Síntese dos
Indicadores Sociais” não é decenal como o Censo, portanto, seria mais
natural estabelecer comparações com suas edições anteriores, como a de
2012, a de 2010, a de 2009, a de 2007, etc. Se fosse para falar de
decênio, então que se usassem os referenciais exatos: década de 1990,
década de 2000 etc. O corte justamente a partir de 2002 tem claramente
um viés político, como se a melhoria de indicadores sociais – algo de
evolução lenta e precisão difícil – fosse regida pelo calendário das
urnas.
Compulsando virtualmente edições anteriores da “Síntese
dos Indicadores Sociais”, constata-se que esse tipo de reflexão, em
moldes claramente políticos, tem tudo para ser inédito. As primeiras
“Sínteses”, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, eram sóbrios
conjuntos de tabelas acompanhados de notas técnicas. Posteriormente, no
governo Lula, elas foram transformadas em livros, com análises mais
rebuscadas. Mas as introduções das “Sínteses” dos anos anteriores são
estritamente técnicas: elas explicam a importância dos bancos de dados
estatísticos para os Estados nacionais, baseando-se na recomendação da
ONU, e discutem aspectos históricos ou metodológicos desse gênero de
estudos. Já a introdução da “Síntese dos Indicadores Sociais 2013” é uma
anomalia. Creio que, como se trata da última edição desse estudo antes
das eleições de 2014, o IBGE foi obrigado a antecipar o horário
eleitoral gratuito, transformando a “Síntese 2013” numa peça de
propaganda política.
Um crime de lesa-ciência
Quando
afirma que, “entre 2002 e 2012, a sociedade brasileira passou por
mudanças que produziram impactos significativos sobre as condições de
vida da população”, o IBGE simplesmente está cometendo crime de
lesa-ciência. O impacto mais significativo sobre as condições de vida da
população brasileira – especialmente sobre as condições de vida da
população mais pobre – continua sendo o fim da inflação. Que não ocorreu
entre 2002 e 2012 e, sim, em 1994, com a adoção do Plano Real, liderado
pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda do
presidente Itamar Franco. Nada corroía mais o poder aquisitivo do
trabalhador do que a inflação desenfreada. A inflação reduzia a vida das
famílias pobres a uma luta diária pela sobrevivência. Não era possível
pensar nada a longo prazo. Tudo se resumia a disputar preços com
remarcadores nos supermercados.
O
IBGE vai mais longe e não se peja de fazer propaganda explícita do
Programa Bolsa-Família, criado pelo então presidente Lula, que
confessadamente se inspirou no Programa Renda Cidadã do governador de
Goiás, Marconi Perillo, do PSDB. Eis o que afirma o IBGE, como se a
“Síntese 2013” fosse para ser lida no horário eleitoral gratuito: “A
criação, ampliação e consolidação de um conjunto de políticas de
transferência de renda voltadas para segmentos da população
historicamente excluídos de medidas protetivas por parte do Estado
contribuiu também para a redução nos indicadores de desigualdade de
rendimento, acesso a programas e serviços de saúde na área de atenção
básica e frequência escolar. A ampliação do ensino obrigatório para
crianças de 4 a 17 anos de idade, prevista na legislação vigente, renova
os desafios de superação dos gargalos reconhecidos, como o acesso à
educação infantil e ao ensino médio”.
Na expressão “historicamente excluídos”, percebe-se Lula falando pela
boca do IBGE: “Nunca antes na história deste País...” Pelo menos desde
Getúlio Vargas, o Estado brasileiro demonstra grande preocupação com os
excluídos. Da carteira de trabalho ao seguro-desemprego, passando por
instituições como Cohab (habitação) e Cobal (alimentos), o Estado sempre
se preocupou com os pobres. Se essa preocupação dá resultados ou não é
outra história, mas que ela existe, não há dúvida. A maioria dos
políticos costuma dizer que trabalha para os pobres, pois os ricos não
precisam do Estado. E é verdade. Mesmo quando um político pratica
corrupção, ele o faz no bojo de obras ou políticas públicas voltadas
para os mais pobres. Por incrível que pareça, o único político que fez
questão de alardear ter trabalhado para os ricos foi o próprio Lula, ao
admitir que os bancos nunca lucraram tanto como em seu governo e ao
transformar o BNDES no provedor da Bolsa-Empresário.
Progressiva estatização da mendicância
De acordo com o último relatório de gestão consolidado do Programa
Bolsa Família, publicado em março de 2012 e que traz os dados relativos a
2011, em oito anos de existência, “o Bolsa Família expandiu-se,
tornando-se um dos programas sociais de maior cobertura na rede de
proteção social brasileira”. O ufanismo da frase anterior é justificado
pela frase seguinte, também extraída literalmente do relatório oficial
do programa: “Saltou de 3,6 milhões de famílias beneficiárias, em 2003,
para 13,3 milhões em dezembro de 2011”. Esse número é superior à meta de
12,9 milhões de famílias que havia sido fixada no Plano Plurianual
2008-2011. E o número de famílias beneficiadas pelo Bolsa-Família
continua crescendo: no último mês de novembro, segundo dados oficiais do
Ministério do Desenvol-vimento Social, foram 13.830.095 famílias
beneficiadas, que receberam um total de R$ 2,109 bilhões em benefícios.
Somente nos 23 últimos meses, 468.592 famílias foram incorporadas ao
programa, ou seja, quase meio milhão de famílias.
Se
considerarmos uma média de quatro pessoas por família atendida, chega-se
à conclusão de que o Programa Bolsa-Família beneficia, no mínimo, 55
milhões de brasileiros, mais de um quarto da população do País. Notem
que esse número é expressivamente superior os 40 milhões de brasileiros
que o governo Lula, com a varinha de condão estatística da Fundação
Getúlio Vargas, diz ter transformado na “nova classe média” – a maior
mentira oficial de toda a história do Brasil, apesar de referenda por
uma das maiores universidades do País. Diante desses escandalosos dados
oficiais, não há razão para o IBGE se ufanar das políticas de
transferência de renda do governo federal, atribuindo a elas “a redução
nos indicadores de desigualdade de rendimento, o acesso a programas e
serviços de saúde na área de atenção básica e a frequência escolar”. Ao
contrário do que diz o IBGE, isso nada tem a ver com redução sustentável
da desigualdade – é apenas a progressiva estatização da mendicância.
Na equipe que coordenou a “Síntese dos Indicadores Sociais 2013” do
IBGE, não deve haver nenhum economista liberal. Devem ser todos
keynesianos ou marxistas, pois a fé no Estado, como salvador da
humanidade, está presente a cada linha do documento. Exemplo disso é a
análise que o IBGE faz da geração que ele próprio classificou de
“nem-nem” – jovens de 15 a 29 anos que nem trabalham nem estudam e somam
19,6% nessa faixa etária. O próprio IBGE destacou esse aspecto da
pesquisa, alardeando-o na imprensa. E um dado que provocou verdadeira
comoção nos jornais, norteando as manchetes do noticiário sobre a
pesquisa, diz respeito às mulheres: “A proporção de mulheres entre os
que não estudavam e não trabalhavam foi crescente com a idade: 59,6%
entre aqueles com 15 a 17 anos de idade, atingindo 76,9% entre as
pessoas de 25 a 29 anos de idade”.
Os jornais quase derramaram
lágrimas, acreditando, como o IBGE, que estavam diante da discriminação
de gênero. Ocorre que tinham pelo menos um filho: 30% das mulheres de 15
a 17 anos de idade; 51,6% daquelas de 18 a 24 anos e 74,1% daquelas de
25 a 29 anos. Isso explica o alto porcentual de mulheres que não
trabalham nem estudam nessa fase da vida. Em sua maioria, elas fazem
opção preferencial pelo filho por uma questão de bom senso, recorrendo
ao conceito de vantagens comparativas ainda que intuitivamente. De que
adianta trabalhar fora e gastar quase todo o salário com uma babá para
cuidar do filho? Ou negligenciar o rebento para frequentar uma escola de
alta periculosidade, que mal consegue formar analfabetos funcionais? A
despeito do feminismo, muitas mulheres querem ser mães. No México, 77%
das jovens mexicanas nem estudam nem trabalham fora, preferindo criar
família.
Mais grave do que não trabalhar nem estudar para
cuidar do filho é não trabalhar e fingir que estuda apenas para
eternizar uma esmola estatal. Mas não é o que pensa o IBGE, que replica
em seus estudos o pensamento hegemônico nas universidades. A “Síntese
dos Indicadores Sociais 2013” foi produzida à luz da Emenda
Consti-tucional nº 65, que transformou em crianças jovens maiores de 18
anos e resultou no Estatuto da Juventude, uma lei que considera
totalmente dependentes da família, do Estado e da sociedade marmanjos de
até 29 anos de idade. Daí a explícita preocupação da pesquisa do IBGE
com os adultos que se enquadram nessa faixa etária. Como o artigo 227 da
Constituição, transformado pela Emenda 65, igualou os jovens adultos às
crianças de colo, a geração “nem-nem” criada pelo IBGE deixa de ser uma
questão de vadiagem para se tornar um problema do Estado e da sociedade
– transformados pela Constituição em babás de marmanjos.
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.